quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Na minha torre de ébano, numa penumbra costumeira, a treva me engole e nada mais desejo ou ouço. A doença se apropria de cada um dos meus pensamentos maculando o que sinto com um fétido aroma de insuficiência, fracasso e solidão. Vou me perdendo entre os quartos escuros da minha mente, sem qualquer luz me parecem exatamente iguais, tateio em busca de um objeto qualquer que possa me segurar, mas em vão vou escorregando sem escapatória pela inclinação insana dos meus pensamentos sinuosos , minhas memórias subvertidas pela minha condição se confundem com devaneios cruéis em palavras de acústica rude, presunções terríveis que me afogam na minha lama (alma). Já não enxergo mais nada, estou sentado em um canto sem sentir qualquer coisa que não seja um terror atroz que faz tudo girar e minhas pernas perderem as forças.

De repente escuto sua voz.

Não é a voz de quem eu queria ouvir, quanto a isso não há dúvidas, mas esta também me é familiar, num timbre grave consonante com algo na minha alma (lama). Não é a melodia que eu roguei para que me salvasse, me esqueci de ti, e mesmo com todo o desprezo que te reservei lá está você, num sorriso asqueroso, que mais parece um esgar malévolo, tu me estendes a mão, e eu rio de mim também pensando no quanto fui tolo de esquecer-me de ti, e rimos  juntos, feito dois lunáticos, enquanto dançamos com passos que só aqueles que foram iniciados são capazes de entender e a sombra já não me parece tão densa, a treva não pinica mais, começo a distinguir nuances onde até então só existia o negrume. Estou mais calmo e um pouco menos infeliz. Você faz sua reverência costumeira, exatamente como na primeira vez, e eu me despeço e adormeço me sentindo grato pelo seu resgate, sua voz e sua companhia.

sábado, 10 de julho de 2021

Realidade

Me sinto mais carente de realidade, de um mundo onde as coisas sejam de fato e não só se pareçam reais. A realidade se tornou caricata, coisa de quadrinhos ou jogos, as pessoas se parecem com personagens em grandes mundos cuidadosamente descritos em livros de distopias, repetindo os mesmos bordões, slogans e verdades. Qual espaço nos sobre de realidade nessa colcha de retalhos estranha que nos compõe? O criador nos cria a sua imagem e semelhança, e nós também criamos outras criaturas a nossa própria imagem e semelhança, e quem vive de fato? É difícil dizer, as personas se espalham e se tornam autônomas, poderiam sê-lo se fossem autenticas, mas são só construtos que gritam e reivindicam a humanidade que fizeram questão de se despir ao adentrarem esses novos infernos digitais. Os criadores se tornam a imagem e semelhança das criaturas, mas os cruzamentos são tão confusos e incertos que mais parecem um borrão, um amontoado costurado de argumentos e as reverências socialmente aprovadas num mar de hipocrisia onde nenhum peixe está mais vivo de fato. Eu, que sempre fui intimo com a tecnologia, sou hoje provavelmente a pessoa mais analógica que conheço. As conexões que busco se tornaram rarefeitas, desconectei o RJ45 e sobrevivo das minhas pequenas migalhas de laços que ainda restam, não se sabe até quando.