quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Como estar sob uma chuva intensa e gelada, cada gota é uma farpa que lacera a carne, e ter que andar da casa pra escola numa quinta feira no início de julho. Mas não chove. O corpo não sangra, as outras pessoas simplesmente não sentem nada, e não há sequer vestígios de umidade na roupa. Em que medida isso é de fato? Há qualquer coisa que não explico, essa angústia que me espreita em cada curva ou esquina. O aperto que arrebata dessa maneira particular, corta as velas e se fica à deriva nesse mar de lama, alma como fel que aprendemos a esconder entre as dobras dos sorrisos e servir apenas a parte doce da ambrosia podre.

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Todo dia me pergunto quando vou ficar bem. Não é como se eu não tivesse momentos melhores, acho que tive sim dias mais tranquilos, e recentemente alguns menos tristes, mas sinto como se esse marasmo esquisito fosse durar pra sempre. Quando vou ficar bem? Eu já não sei exatamente onde fica o buraco, se é psíquico, químico, social? Não sei, mas as coisas tem ardido e me cansado mais do que o de costume. Dormir tem sido meu escape favorito, meu deleite, e vou me sentindo tanto mais descolado desse mundo que já nem dos remédios preciso mais, apenas deito, meu corpo não está cansado, e minha mente possivelmente também não, mas fecho os olhos e me deixo levar pra algum lugar, qualquer lugar, dentro de mim. Me refugio na minha concha, e aos poucos vou sentindo que ela não me comporta mais, não me esconde mais do mundo e o mundo também não é capaz de me comportar e o que seria? Quando vou voltar a me interessar de fato por alguma coisa? Já não são mais os remédios, acho que sou eu, e talvez essa impaciência toda seja contraprodutiva, mas é só o que tenho.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Prostrado na plataforma aguardava angustiado o primeiro trem, junto aos outros tantos passageiros que olhavam seus relógios aflitos por seu atraso. Não lembrava exatamente o destino, mas tinha a sensação de que ao embarcar a ansiedade sumiria, com alguma sorte ainda teria um acento livre e poderia finalmente fechar os olhos por alguns instantes. Precisava ir, sabia disso como sabia que dali poucas horas a aurora resplandeceria no céu, mas não sabia para onde, tinha que andar, correr, pois sentia-se sufocado, até que o corpo encontrasse alguma pequena morte que desse sossego a desarmonia que levava no peito. Não importava para onde, mas o desassossego incomodava e ainda assim andar de mãos dadas com ele e estar sob sua tutela era horrível. Tinha que pensar, entender, sentir todo aquele fluxo turvo, caudaloso, depurar e encontrar no fundo de si a si mesmo. Sabia que de outro modo seria tudo somente ilusão, que o demônio atormentador só descansaria para retornar ainda mais irado quando tudo fosse silêncio.

Não podia ir, nem ficar.

O trem chegou e logo partiu.

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Encarnação da água (pt. 2)

O que poderia ser feito por mim? Pela minha alma que oscila entre tons de azul e rosa, descompassada, confusa, que parece que não se adequa a esse mundo. Entre os diversos processos passo por tribunais em locais improváveis, que me mandam para outras instâncias onde não podem explicar o crime, ou a lógica do litígio, e eu sigo condenado por algum delito que não entendo, estigmatizado por aquilo que ninguém ao certo consegue definir. Fico preso na cela existencial vendo outros condenados, encapuzados num silêncio quase escrupuloso.

Eu caminho até a porta, abro e vejo uma multidão marchando, batendo os pés fortes, meu deus por que tanta força?! Meto-me entre eles, vou achando o tempo e marco a marcha, tento imitá-los em seus sorrisos, mas não consigo! Vejo que o destino é um abismo, e os olho incrédulo, os que chegam a ponta caem, e os desgraçados dançam graciosamente! Luto desesperado enquanto tento andar pra atrás, mas a multidão alegre me carrega como uma onda infalível, inevitavelmente caio, mas não consigo dançar como os outros, então grito mudo até que o ar acabe e sinto a força contrária do chão no corpo que busquei, sinto meu corpo uma última vez.

Acordo, não levanto da cama e nem estou suado, apenas abro os olhos, são quatro da manhã, ouço um barulho repetitivo do movimento mecânico nas engrenagens do maquinário, alguém toma o elevador por certo, e o som inumano conforta como a batida do coração materno que paradoxalmente despreza. Marca da minha não-humanidade, meu componente mais íntimo e mácula de tudo aquilo que não sou, mas não faz diferença. Tomo o comprimido, sinto os pequenos espasmos, as mãos derretem enquanto o armário me dá um olhar de reprovação cínico, não importa, tudo se liquefaz e eu afundo em éter enquanto fecho meus olhos.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Afogar-se.

Tu esqueces de mim, com uma facilidade e rapidez tão grande que me entristece e (re)parte de leve (ainda mais) meu âmago. Sinto que vai como veio, sinto que nunca me escutas muito bem, sinto que no fundo a gente nem divide nada "nosso", sinto como um rio as vezes, que as coisas fluem de um lado só, seus sonhos, desejos, paixões. Sou só receptáculo, sou só realizador (e nunca realização), como fui para todas as outras almas que amei intensamente, sou ineficiente, incompleto, fragmentado e quebrado demais na minha maneira de ser. Mas eu sigo querendo acreditar em ficções sobre navios voadores, porque além de tudo isso sou também tolo.

Eu entendo que guardo em mim uma chave especial, que todas vieram buscar naquele momento que precisam, tenho essa sensação de que meu propósito é conceder dádivas, mas como o gênio, estou preso a minha própria lâmpada. Sinto a mediocridade da minha alma pueril, obliqua e sinuosa, que sabe poucas coisas práticas, conhece pouca beleza e não sabe fluir com a corrente, ora não posso saber. A água entra por entre as fissuras visíveis da minha superfície e eu, invadido sem qualquer escolha, apenas afundo. Mas aquilo que abraçou a morte a tanto tempo já não pode mais se afogar.

Eu gosto das coisas quebradas, rachadas, meio tortas, me encontro nelas, sinto que elas de alguma maneira ressoam e se encontram em mim também. Com o tempo fui aprendendo a esconder minhas trincas com cera, como fazem com os vasos, fiquei tão bom na arte que ficara praticamente imperceptível que não faço parte dos sinceros. Quase sempre me confundem, e só percebem aqueles que olham muito muito de perto, que removendo a cera existe algo não tão fluido como mandam os manuais de boas pessoas. Melancólico, mas não aborrecido, profundo, mas não pesado. Minha densidade particular assombra, pois se me seguram na tormenta logo percebem que não boio, ao contrário, afundo. Estar entre outros tantos afogados, cadáveres de suas próprias mágoas, tem para mim um peculiar aroma de casa.

sábado, 20 de abril de 2019

Dividir.

É curioso pensar a solidão, sobretudo depois de tanto tempo "acompanhado", ou ainda as solidões, que, por uma perspectiva, trazem algumas potências. É um pouco triste não ter com quem falar, ou se sentir inseguro para falar daquilo que aflige, ou mesmo ter que segurar por uma semana algo que depois não faz mais sentido. A medida do tempo que diminui, conforme este passa, vai tornando-o um recurso mais raro, mais caro, menos contingentes, mais cartográficas. Vamos medindo os espaços de adequação, o que se pode e o que não se pode, quais são as regras, que máscara colocamos, que aspectos vestimos: Despojado ou formal? Bermuda ou calça? Vou porque tenho ou vou porque quero? Todas as relações obedecem a isto no final das contas, e nenhuma regra tradicional as burla.

Temos amigos mais próximos, que suportam nossas dores, nos estendem uma mão, duas, as vezes até os pés nos momentos em que a solidão aperta de forma atroz, mas eles não podem estar sempre lá, também têm suas vidas, suas relações incontingentes, ou mesmo contextos em que se há mais o que dizer. No final das contas, relações fixas me importam na medida que se pode dividir coisas com alguém, desnudar-se, não parecer, apenas mostrar as fendas, trincas, os sorrisos tortos, a melancolia, de maneira completa. Essas relações que se tornam muito seguras na maior parte do tempo permitem pouco espaço para além das máscaras, ou pouca atenção aos detalhes, e acho que me agradam as minúcias, os diabos que habitam nos pormenores e entregam verdades que não podem ser ditas, apenas sentidas, mas são deliciosamente cruéis e mordazes. Sentir dor ainda é melhor do que a apatia.

Dividir o pouco que se tem de si, do pouco que se sente, das perturbações, do gozo, das tranquilidades, o que se vê apenas na lupa ou pela lente do microscópio. Soa como uma obsessão, mas não é, essas trocas são naturais, tranquilas, seguem um próprio ritmo, um compasso de encontro e desencontro, quiçá até o momento que já não interesse mais encontrar. Tudo bem, eu me entrego, desisto e visto as máscaras, não há porque nadar contra a corrente, não é? Ainda tenho momentos que posso me desnudar um pouco mais, daquilo que me aflige e daquilo que desejo. Talvez tenha de fato tempo demais nas mãos, talvez tenha de fato sensações demais para dar conta e talvez de fato tudo me seja intenso e real demais e eu não saiba lidar com outras medidas. Talvez nós possamos dividir essas pequenas palavras, e aqui ainda seja um espaço onde possamos nos despir e revelar o vergonhoso vácuo sufocante do nosso eu.