quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Encarnação da água (pt. 2)

O que poderia ser feito por mim? Pela minha alma que oscila entre tons de azul e rosa, descompassada, confusa, que parece que não se adequa a esse mundo. Entre os diversos processos passo por tribunais em locais improváveis, que me mandam para outras instâncias onde não podem explicar o crime, ou a lógica do litígio, e eu sigo condenado por algum delito que não entendo, estigmatizado por aquilo que ninguém ao certo consegue definir. Fico preso na cela existencial vendo outros condenados, encapuzados num silêncio quase escrupuloso.

Eu caminho até a porta, abro e vejo uma multidão marchando, batendo os pés fortes, meu deus por que tanta força?! Meto-me entre eles, vou achando o tempo e marco a marcha, tento imitá-los em seus sorrisos, mas não consigo! Vejo que o destino é um abismo, e os olho incrédulo, os que chegam a ponta caem, e os desgraçados dançam graciosamente! Luto desesperado enquanto tento andar pra atrás, mas a multidão alegre me carrega como uma onda infalível, inevitavelmente caio, mas não consigo dançar como os outros, então grito mudo até que o ar acabe e sinto a força contrária do chão no corpo que busquei, sinto meu corpo uma última vez.

Acordo, não levanto da cama e nem estou suado, apenas abro os olhos, são quatro da manhã, ouço um barulho repetitivo do movimento mecânico nas engrenagens do maquinário, alguém toma o elevador por certo, e o som inumano conforta como a batida do coração materno que paradoxalmente despreza. Marca da minha não-humanidade, meu componente mais íntimo e mácula de tudo aquilo que não sou, mas não faz diferença. Tomo o comprimido, sinto os pequenos espasmos, as mãos derretem enquanto o armário me dá um olhar de reprovação cínico, não importa, tudo se liquefaz e eu afundo em éter enquanto fecho meus olhos.

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